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Juntos, eles se livraram do crack

Geral – 17/01/2012 – 16:01

Iasmim acaba de completar o segundo aniversário mas sua história com o crack começa há dez anos, quando Janaína e Gelson, seus pais, se encontram pela primeira vez em uma boca de fumo na região central de Porto Alegre (RS).

Desesperados por uma pedra – e com apenas algumas moedas no bolso – os jovens de 18 anos recém-completos nunca tinham se visto, mas resolveram juntar o escasso dinheiro que tinham para abastecer o cachimbo e “calibrar” o cérebro até o raiar do sol naquele dia de 2001.

Era o início de uma parceria que duraria uma década de pitadas frenéticas e diárias, intercaladas por episódios de violência e também por dois filhos.

Felipe, hoje com 6 anos de idade, e Iasmim – que estica os dedos indicador e médio para mostrar a idade que tem – foram concebidos, gestados e paridos em meio ao uso compulsivo da droga dos pais. Eles representam o novo calcanhar-de-Aquiles dos médicos que tratam a dependência química.

Segundo os especialistas, a epidemia do crack espalhou pelo Brasil inteiro crianças que, ainda na barriga materna, recebem via placenta todas as substâncias químicas que compõem o entorpecente, um “primo pobre” da cocaína.

“O tratamento para eles ainda é incerto e os prejuízos pouco conhecidos”, afirma o psiquiatra da Associação Brasileira do Estudo de Álcool e Drogas, Sérgio de Paula Ramos.

“Estes bebês já nascem com sinais de abstinência. Não dormem, não têm fome, são irritados, transpiram muito”, completa Fábio Barbirato – psiquiatra da Associação Brasileira de Psiquiatra, especializado em filhos de dependentes e que atua com recém-nascidos do Rio de Janeiro.

“A longo prazo, não sabemos os efeitos nestas crianças, mas é certo que o acompanhamento minucioso para amenizar os danos – com medicações e terapia – precisa ser feito por no mínimo cinco anos. Algo que hoje é utópico dentro de um contexto de uso de crack.”

Regra e exceção

O mesmo pessimismo de Barbirato ao traçar o acompanhamento ideal para as mães e filhos do crack está nas casas de parto que recebem estas crianças. Na maternidade de São Paulo Leonor Mendes de Barros – referência para gestantes de alto risco da região central (que engloba o perímetro chamado Cracolândia) – as grávidas usuárias de crack muitas vezes nem se dão conta que entram em trabalho de parto. Elas trazem ao mundo prematuros com complicações cardíacas e neurológicas sérias e, não raro, desaparecem horas depois de parir – deixando para trás seus bebês ainda na incubadora – conta a chefe da Assistência Social da unidade, Regina Dias de Barros.

Ocorrências como essa aumentaram de forma avassaladora no Leonor. Há quatro anos, um bebê nascido no hospital foi afastado da mãe devido a dependência química. Esse número subiu para 15 registros em 2008, 30 em 2009 e 43 em 2010. Somente no ano passado, foram 52 casos. A mesma realidade é atestada na maternidade do Hospital Universitário do Paraná – 7 casos em 2008 e 61 em 2010.

Iasmim, ao nascer em Porto Alegre pesando pouco menos de um quilo, irritadiça e sem força para chorar, não fugiu à regra do quadro clínico das crianças desenvolvidas em úteros dependentes químicos. Mas foi a saúde frágil da menina – “beirando a morte”, nas palavras das enfermeiras – que despertou em Janaína a vontade de virar exceção. Ela, que fumou mais de dez pedras de crack algumas horas antes de chegar à maternidade, conta que não quis mais conviver com o perigo letal da droga.

“Decidi que faria tratamento e voltaria para buscar minha caçula não importasse o tempo que passasse. Peguei Iasmim no colo e procurei algum sinal de nascença nela que eu pudesse reconhecer meses e meses depois. Precisava de alguma marca para reconhecê-la”, lembra.

“O Gelson também já queria se tratar e a menina tocou o coração dele. Por conta própria, buscamos uma clínica dois dias depois do parto.”

Foram embora com aquela manchinha no joelho esquerdo de Iasmim na memória. Era o início da família Venâncio sem drogas. Não só isso: eles também viraram referência no protocolo de acolhimento dos núcleos familiares que são devastados pelo crack, atendidos na Fundação de Proteção Especial (FPE) do RS.

Gelson foi bom aluno. Adorava Português e História, mas tinha desempenho ainda melhor no futebol. Gremista “roxo”, aos 15 anos, ele se preparava para vestir a camisa de titular do time da cidade. Porém, as roupas de marca e as correntes de ouro que estranhamente enfeitavam seus vizinhos chamaram mais atenção do que o uniforme esportivo.

“Quis saber como meus colegas conseguiam dinheiro e descobri que eles vendiam droga. Passei a vender e a usar crack. Abandonei todos os meus sonhos. Nunca mais bati uma bola”, lembra.

No mesmo bairro, Janaína – fanática pelo Inter – acreditou que aquela pedra branca e barata poderia fazer companhia nas noites solitárias em que a mãe passava fora de casa, jogando bingo.

“Tinha 16 anos. Duas pitadas depois, estava viciada.”

Gelson e Janaína então se conheceram na boca de fumo e, na mesma noite, decidiram morar juntos. Não por amor à primeira vista, dizem, mas pela facilidade de acumular, em dupla, trocados para comprar a droga.

Embaixo da ponte, atrás do lixão, na calçada. Estes foram os endereços do casal, apesar de ambos terem casa.

“Minha família desistiu, com razão, de mim. Uma vez por semana me dava um prato de comida, passado pelas grades do portão”, lembra Gelson.

Janaína diz que “esqueceu o que era sentimento”. Tanto, que após a primeira gravidez, decidiu imediatamente entregar o menino para a mãe de Gelson.

“Com vergonha, eu digo: o crack falou mais alto do que a vontade de ser mãe.”

O repasse da tutela para outros integrantes da família – tios e avós – é o destino mais comum dos recém-nascidos de viciados em crack que chegam à FPE.

“As gestantes, em geral, vão para a maternidade de viatura policial e não de ambulância. Não querem mais contato com os filhos e a reinserção familiar é quase sempre feita por meio de um parente próximo ou elas são encaminhadas à adoção”, conta a chefe da assistencial social da FPE, Maria do Carmo Fay.

“Há dois anos, quando a Iasmim chegou até nós, pensamos que ela, como tantas outras crianças, iria repetir o mesmo enredo. Mas, na maternidade, as enfermeiras nos contaram que a mãe tinha prometido buscar tratamento por causa da filha. Resolvemos então fazer uma abordagem diferente. Uma recuperação simultânea que, sempre que possível, gostaríamos de implantar com outras famílias.”

V de vitória

Ainda com dores do parto natural de Iasmim, Janaína foi para uma comunidade terapêutica evangélica. Os primeiros três meses foram só para se desintoxicar do crack. Gelson conseguiu vaga na unidade masculina na mesma instituição e viu o relógio andar em câmera lenta nestes mesmos 90 dias iniciais de internação.

“Sem a pedra na cabeça, descobri que amava minha mulher e queria minha família de volta. Chorava toda vez que lembrava do Felipe. Quando o garoto me encontrava na rua, eu estava sujo e maltrapilho. Ele gritava ‘papai’ e esticava os bracinhos. Eu simplesmente o ignorava porque queria fumar mais uma pedra.”

Neste primeiro trimestre de tratamento, as assistentes sociais Maria do Carmo e Isabel Cristina Dias, descobriram onde Gelson e Janaína estavam internados e criaram uma estratégia de ação: assim que os médicos liberassem, iriam levar Iasmim – que estava em um abrigo – ao encontro dos pais e tentar fazer uma recuperação simultânea da família.

“Acreditamos que a criança seria beneficiada se recebesse carinhos materno e paterno. E os pais também seriam estimulados à continuidade do tratamento se tivessem contato com a menina.”

Nove meses depois, com as devidas autorizações, Iasmim foi levada à clínica, ao encontro de Gelson e Janaína. A mancha do joelho foi prontamente reconhecida pelo casal.

Os dois ficaram mais um tempo internados. No entanto, semanalmente recebiam a visita de Iasmim, que no colo das assistentes sociais, deixava o abrigo provisório para “cuidar dos pais”. De imediato, a menina não reconhecia a mãe e não queria ficar em seu colo. “Mas a Janaína teve uma postura exemplar. Olhava para a criança, insistia nos chamegos, trocava a fralda, dava banho. No terceiro encontro, Iasmim já sorria quando olhava para a mãe”, conta Isabel.

Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena

Depois de um ano e meio de tratamento, a família Venâncio está completa e sem o crack

Após um ano e dois meses internados, Gelson e Janaína tiveram alta e conseguiram alugar uma casa de dois cômodos em São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, graças ao bico de “faz tudo” que os pastores ajudaram ele a conseguir. “A religião nos salvou. Hoje sou voluntário e ajudo outros dependentes químicos no projeto Café Convívio da Igreja”, diz Gelson.

Com supervisão judicial, Iasmim foi voltando para os pais, em visitas monitoradas pelas assistentes Isabel e Maria do Carmo. Há quatro meses, a pequena foi autorizada a morar em definitivo com eles. Mensalmente, a família toda passa pelo médico e até com psicólogos. “Foi um modelo que deu certo, mas nem sempre é possível colocá-lo em prática. Mas a ideia é: sempre que recebermos uma criança no abrigo que os pais tiverem em recuperação, promover estes encontros supervisionados”, diz Maria Do Carmo que, mensalemente na FPE, recebe entre 10 e 12 “filhos do crack”.

Felipe também deixou a casa da avó paterna e, feliz da vida, mostra seu quarto montado pelo pai. Aprendeu a torcer para o Grêmio e, quem sabe, um dia será jogador de futebol “ou lixeiro, talvez bombeiro”, pontua o menino.

Foi Janaína quem ensinou Iasmim a indicar com os dedos a própria idade. Tudo para fazer bonito na festa do segundo aniversário.

“Além do número dois, também pode ser o V de vitória, né? A minha, do Gelson, do Felipe e da Iasmim, a nova família Venâncio”, comemora ela, aos 29 anos, e livre do crack.

Fonte: Ig

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